Nuvéns escuras continuavam encobrindo o céu do sertão na terceira e última manhã em Quixadá, mas ficaria guardada para sempre na lembrança, a bela alvorada que presenciei no primeiro dia.
Acabara de fechar a bagagem e estava me dirigindo para fazer o check out, quando assusto-me ao colocar a mão na maçaneta de fora. Pegara em algo mole, frio e pegajoso! Era uma enorme rã que, placidamente, repousava ali, na porta. E de lá não se moveu, mesmo depois de fotografá-la em diversos ângulos. Saí deixando a porta aberta para não incomodá-la.
O taxi já aguardava para ir me deixar na rodoviária. Precisava, ainda, comprar a passagem para Canidé, pois nenhuma das duas empresas que fazem o percurso emitem a passagem com antecedência. E isto se deve a um simples fato, que só vim comprovar na hora do embarque: as poltronas não são reservadas porque, partindo de outra cidade, o ônibus já pode estar com todas elas lotadas! Você paga, mas pode não ter sorte de encontrar uma vazia e vai fazer a sua viagem em pé.
Felizmente consegui uma poltrona vazia, apesar de já existir muita gente ocupando o ônibus. A viagem foi tranquila, apesar das inúmeras paradas pelo caminho para embarque de mais passageiros que não tinham outra opção, a não ser viajar em pé. Alguns, irritados, reclamavam da situação a qual eram obrigados a se sugeitar, já que as únicas duas empresas so disponibilizavam um ônibus, cada uma, por dia. Restava-me o consolo do veículo ser razoavelmente confortável. Passamos por mais um açude, o de Choró, ao lado da conservada CE 456 e por ela atravessamos uma parte mais baixa do Maciço de Baturité até chegarmos num trecho esburacado da CE-020.
O Maciço de Baturité, no centro norte do Ceará e próxima ao litoral, é um conjunto de serras de 1.300 quilômetros quadrados, que recebe ventos úmidos do mar, garantindo altos níveis de precipitação. Sua geografia e altitude (seu ponto culminante fica a mais de mil metros acima do nível do mar) propiciam um clima ameno e uma paisagem de Floresta Atlântica úmida que, por sua vez, contrasta com a vegetação arbustiva da caatinga. Com diversas espécies vegetais e variados representates da fauna, com grande riqueza de aves e insetos, é considerada uma ilha úmida no contexto semi-árido do Nordeste brasileiro.
Chegamos à Canidé duas horas após, não antes de visualizar, ainda da estrada, a enorme imagem de São Francisco de Assis que, ao contrário da estátua do Padre Cícero, tem a sua batina pintada, sobressaindo o seu marrom contra o azul límpido do céu àquela hora.
À rodoviária tive mais uma vez a recusa da venda antecipada do bilhete, aqui como em outras cidades interioranas, o ônibus está de passagem, não se sabendo se há ou não poltronas disponíveis para serem reservadas. Da única empresa responsável pela linha, obtive a informação que so teria um ônibus ao dia com destino à Sobral, o meu próximo destino, que passava por alí e que era proveniente de Fortaleza. Imediatamente compreendi o motivo pelo qual a recepcionista não quis fazer a reserva do hotel em Canidé, no dia anterior. A cidade, muito pequena e destituída de atrativos, a não ser a basílica e o monumento em homenagem a São Francisco, não era o local mais apropriado para se pernoitar, a não ser que se estivesse alí por pura devoção ou em romaria. O que não era o meu caso. Portanto, resolvi que faria a visita à cidade e às dezessete horas já estaria de volta à rodoviária para comprar a passagem e embarcar no mesmo dia.
Deixei a bagagem no guarda-volumes e em um micro-ônibus segui para o centro. O grande calor que sentia, fez-me procurar de imediato um local onde pudesse encontrar água mineral. O que não foi difícil, pois em frente a principal Igreja e para onde se dirigem os milhares de devotos, há diversos restaurantes e pequenos bares. Aqui, como em Quixadá e nas demais pequenas cidades do interior, o moto-taxi vem se tornando o principal meio de transporte para o povo e, infelizmente, sem a fiscalização devida, contribui para o aumento nas estatísticas de mortes ou sequelas graves por causa de acidentes.
Canidé é o segundo maior polo de peregrinação do mundo em homenagem a São Francisco de Assis, superada apenas pela que se dá em direção à Assis, na Itália, terra natal do santo. Alí, sob um sol escaldante, milhares de pessoas chegam todos os anos na semana de 26 de setembro a 4 de outubro(dia de São Francisco) para prestar sua homenagem ao padroeiro da cidade. Embora haja peregrinos de todas as classes sociais, a imensa maioria é de pessoas humildes. A devoção dos fiéis é tão forte que o papa Pio XI, em 1923,elevou a Igreja à condição de Basílica, reservado apenas aos principais destinos de peregrinos cristãos em todo o mundo.
A Basílica de São Francisco de Assis é o principal ponto da rota de peregrinação. A construção da capela primitiva foi iniciada em 1775 e no século 19, foi elevada à condição de Igreja Matriz pelo Rei D. João VI. Com um passado de reformas, em 1910 deu-se o início da construção do templo atual. A tarefa ficou a cargo do arquiteto italiano Antonio Mazzini. O seu exterior em um tom de rosa e com sua cúpula prateada é de beleza ímpar. O interior sóbrio e já necessitando de alguns reparos, tem como destaque os magníficos afrescos do pintor italiano George Kau.
No pátio atrás, uma alta escadaria me levou a um salão escuro, num plano mais abaixo, onde inúmeras velas, organizadas em tripés, queimavam simbolizando a luz que iluminaria os destinos dos milhares de devotos que por alí passaram. Ao lado uma grande quadra coberta era palco para mais uma missa. Retornei à basílica e por uma porta lateral esquerda saí no pátio onde estava a Casa dos Milagres. Local onde os romeiros depositam ex-votos.
A maioria dos fiéis demonstra sua fé por meio de uma expressão típica da cultura religiosa nordestina, os ex-votos, objetos feitos geralmente de madeira, que representam o resultado positivo da promessa ou pelo pedido atendido pelo santo. Mas, na Casa dos Milagres também havia fotografias, pinturas, roupas, mechas de cabelos e até bandeiras de times de futebol, representando as graças alcançadas. Como sempre nestes lugares, também havia ali uma lojinha com artigos religiosos à espera dos mais fervorosos devotos. Aproveitei para comprar um livreto sobre a vida de São Francisco.
Presenciei muitos fiéis pagando promessas, alguns vestidos com traje semelhante ao usado por São Fancisco, outros percorrendo o templo ajoelhados. O mais impressionante era como vários deles se mantiveram o tempo todo descalços. Não tenho idéia de como aguentavam aquele escaldante calçamento.
O almoço foi num daqueles bares/restaurantes do pátio à frente da Igreja. A área é tomada por comércio formal e informal de artesanato baseado em artigos religiosos como terços, velas, medalhas imagens e as famosas fitinhas coloridas de São Francisco.
De volta ao centro procurei me informar como poderia chegar até o local onde estava a famosa estátua. Ônibus não tinha e a alternativa eram moto-taxi ou “topics”, como eram conhecidas as vans que faziam a lotação. Depois de uma longa espera, refrescada com um sorvete embaixo da sombra de uma árvore e sentada num banquinho oferecido pela sorveteira, desisti de esperar e me dirigi para o ponto de táxi. Acordei com o taxista para me levar ao local e de lá até a rodoviária.
A estátua de São Francisco de Assis foi inaugurada em 2005, teve como escultor, Deoclácio Diniz, toda de concreto, utilizou, no revestimento, vidros especiais importados da China. O objetivo foi tornar a imagem mais parecida com a do santo e mais resistente ao clima da região. Efeito plenamente conseguido! A imagem é monumental, localizada numa pequena elevação conhecida como Alto do moinho, possui 30 metros de altura, sendo considerada a maior estátua sacra do mundo. Há um espelho d'agua em todo o seu entorno o que a protege de depredações, já que está no mesmo nível que alcançamos após subirmos os degraus de acesso. Aqui também se tem um profuso comércio informal de pequenos artigos religiosos.
Do alto se pode ter uma panorâmica de toda a cidade, sobressaindo a imponente Basílica de São Francisco das Chagas, como também é conhecido o santo. Após registrar as imagens do lugar, segui para a rodoviária. Estava um pouco ansiosa, pois não tinha qualquer garantia de que ia ter uma poltrona disponível para a viagem de aproximadamente três horas até Sobral.
Cheguei muito tempo antes da hora prevista para o embarque. Aproveitei para ler um pouco sobre a história de São Francisco, fazer ligação para obter notícias de casa, confirmar a antecipação da reserva do hotel em Sobral e, por fim, fazer um reforçado lanche.
Já passava das dezesseis horas quando consegui comprar a passagem. Peguei minha bagagem no guarda-volumes e fiquei aguardando o ônibus proveniente de Fortaleza, que chegou no horário previsto. Havia muita gente para embarcar e de fora já podia perceber que o veículo não estava vazio. Despachada a sacola de viagem e entrei na esperança de encontrar uma poltrona disponível. Mas, naquele ônibus lotado não teria essa sorte e me resignei com o espaço que existia no piso à frente da primeira fila de assentos.
Não fazia quinze minutos que havia me acomodado e um passageiro sentado ao lado da janela e na primeira fila me cedeu o lugar. A viagem para ele terminaria ali, ainda nos arredores da cidade, já que a tinha iniciado em outro lugar. Foi pura sorte estar por perto, caso contrário teria perdido essa vaga, pois havia muitos passageiros viajando em pé. E assim, seguimos por curvas, subidas e descidas da CE-257, até passarmo para a BR-222, que liga Fortaleza a Teresina, no Piauí, ao som do repertório musical do motorista que variava de Reginaldo Rossi a Fernando Mendes.
Durante grande parte da minha infância acompanhei nas noites de sábado e depois nas vespertinas tardes de domingo o programa humorístico “Os Trapalhões” . Dos quatro integrantes, era o Didi quem mais encantava a criançada e não foram poucas as vezes em que o ouvi se referindo a uma cidade cearense onde teria nascido. Sobral era a cidade e aquela a única referência que eu tinha quando entramos por uma das suas principais avenidas em direção à rodoviária.
O relógio marcava vinte horas e trinta minutos do último sábado do ano e foi boa a primeira impressão que tive da cidade com os arcos da ponte sobre o Rio Aracaú iluminados para os festejos natalinos. Desembarquei e me dirigi ao box da empresa Guanabara para obter informações sobre horários e preços de passagens até Ubajara. Ainda não sabia quanto tempo ficaria e so após uma rápida conversa com uma senhora natural de Sobral, fui convencida de que valeria a pena dispor de pelo menos um dia para conhecer a cidade.
Compro a passagem para o início da tarde da segunda-feira e de taxi me dirijo ao Hotel Visconde, no centro da cidade.
Veio se despedir |
São Francisco, em Canidé |
A fé começa cedo |
Da rodoviária, a imagem no horizonte |
Basílica de São Francisco- Canidé